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A polícia de choque reprime manifestantes no distrito de Neukölln, em Berlim. Fotografia: Sean Gallup/Getty Images

A Alemanha continua refém do seu passado

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Ano passado, a Alemanha retaliou o lendário músico Roger Waters e esse ano está censurando o economista grego Yanis Varoufakis e a filósofa americana Nancy Fraser. O que explica uma das principais economias da Europa fazer isso e apoiar um país que foi atacado, no caso ucraniano, e o invasor, no caso israelense?

O economista grego Yanis Varoufakis foi proibido de entrar na Alemanha e de participar de atividades políticas alemãs, mesmo por videoconferência. Pouco antes, a filósofa americana Nancy Fraser – que é judia – foi desconvidada para dar aulas na Universidade de Colônia. Os dois casos aconteceram por causa das posições pró-Palestina de ambos.

Essas surpreendentes e gigantescas censuras ocorrem em um contexto no qual inúmeros ativistas contra o genocídio em Gaza, inclusive judeus israelenses, foram reprimidos, investigados e até presos. A posição do governo de Olaf Scholz é de apoio incondicional a Israel, repetindo o que ele já fazia na questão ucraniana, se opondo completamente a qualquer saída pacífica.

O gabinete de Olaf Scholz – uma coalizão liderada por social-democratas, com verdes e liberais – assume uma postura dogmática com o apoio do establishment alemão, e isso inclui as grandes corporações de mídia. A maior parte da oposição alemã, os democratas-cristãos à frente, também concorda com essa posição, gerando um clima de caça às bruxas total.

Em ambos os casos, a posição alemã é unilateral e inquestionável. Paralelamente, o país, tão conhecido pela irresignada austeridade, despende recursos se militarizando enquanto gasta o que nunca quis com a Ucrânia. Esse enigma aparente leva à indagação da razão pela qual a Alemanha teria enlouquecido. Será que ela enlouqueceu mesmo?

Por que a sujeição completa à OTAN na questão ucraniana?

Há alguns anos, a Alemanha empurrava com a barriga os Acordos de Minsk, que em tese selariam a paz entre Rússia e Ucrânia. A ex-premiê Angela Merkel declarou recentemente, com um estranho orgulho, de que ela trabalhou o tempo inteiro para que os Acordos nunca fossem realmente implementados – tudo para se defender de acusações de que “colaborou com a Rússia”.

O clima político e midiático alemão, de tão intransigente, demandava que Merkel provasse que mentia para a Rússia o tempo todo. O atual líder da oposição e antigo rival de Merkel entre os democratas-cristãos, o magnata Friedrich Merz, tratava sanções contra a Rússia como “um erro” e conclamava as partes à paz, até que assumiu um discurso russofóbico linha-dura.

“Interesses econômicos diretos da Alemanha, que se beneficiava do comércio de gás com os russos, foram sacrificados sem maiores cerimônias.”

Sob a alegação de que a Rússia é uma ditadura expansionista, a Alemanha tomou o lado da posição imperialista da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), forçando sua elite política a penitências vergonhosas. Por outro lado, interesses econômicos diretos da Alemanha, que se beneficiava do comércio de gás com os russos, foram sacrificados sem maiores cerimônias.

O próprio gasoduto Nordstream, que unia Alemanha e Rússia, foi destruído durante o conflito russo-ucraniano, mas apesar do prejuízo gigantesco a Berlim, nenhuma autoridade relevante se dignou a defender uma investigação – cuja origem só poderia ter origem na própria OTAN , uma vez que isso era amplamente danoso também aos russos.

Durante décadas, a Alemanha foi alimentada pelo gás russo, que realizava a demanda energética da titânica indústria alemã; de um lado, era dinheiro rápido, fácil e em grandes quantidades para Moscou, mas por outro lado, isso mantinha uma típica relação metrópole-colônia, com os russos vendo sua desindustrialização em câmera lenta, enquanto os alemães se fortaleciam.

Grande parte da reconstrução nacional russa dos anos 2000 se deu, precisamente, pelo uso dos recursos do gás, por meio de seus bancos públicos, para pagar a dívida externa dos anos finais da União Soviética e dos anos 1990. Mas os russos se viciaram no remédio que salvou suas próprias vidas e se acomodaram na posição de exportador de energia.

Do outro lado, a Alemanha construiu as condições para que sua indústria se mantivesse em território nacional, em vez dela, simplesmente, partir para a China. A oferta quase infinita do gás russo parecia ser o elemento diferencial da manutenção da competitividade alemã – em tempos nos quais o custo-benefício do trabalho chinês demolia as pretensões de sindicatos ocidentais.

Os mais ingênuos podem supor que cortar na própria carne, em termos econômicos, só provaria a pureza e honestidade da posição alemã no que toca à Rússia. Mas isso apenas indica a sujeição do aparato econômico alemão a ditames estratégicos que Berlim não controla, uma vez que o lado que o país tomou é expansionista e não oferece maiores garantias democráticas.

Dentre outros pontos que contradizem a tese do “idealismo à toda prova” dos alemães, está que a Rússia nunca quis iniciar essa guerra, nunca se opôs verdadeiramente à neutralidade ucraniana e a única linha vermelha para Moscou – conhecida por todas as partes – dizia respeito, precisamente, à expansão da OTAN para o mar Negro.

A repressão à causa Palestina

É possível imaginar que a Alemanha teve uma reação “emocional” aos ataques do Hamas a Israel em razão dos crimes praticados pelo nazismo contra os judeus. Mas como poderia a Alemanha tolerar a resposta não só desproporcional como tresloucada de Israel contra civis palestinos, justamente, pelo seu passado?

O pior ainda é o uso do seu aparato policial para reprimir manifestantes, silenciar intelectuais e artistas como no caso do último Festival de Berlim, no qual até mesmo um documentarista judeu israelense Yuval Abraham, que codirigiu o documentário vitorioso No Other Land, foi considerado “antissemita” e passou a ser investigado pelas autoridades alemães.

“Estamos falando de um país que autorizou há uma década o funcionamento de um partido de extrema direita e nunca tratou com a mesma dureza marchas anti-imigração com claro caráter islamofóbico.”

A repressão às manifestações pró-Palestina, desqualificadas sistematicamente como “antissemitas”, passaram a ser proibidas bem como o uso do slogan “Do Rio ao Mar”, rendendo perseguições estatais a ativistas – mesmo quando eles são judeus. Simplesmente, não há preocupações equivalentes, como qualquer compliance em relação ao que Israel faz na Faixa de Gaza.

Scholz, mais uma vez, constrói um argumento racional – a justiça de uma causa que demanda uma posição inequívoca da Alemanha – seguido de uma adesão, literalmente, incondicional do seu governo, o qual não põe em questão nenhum ato – por mais duvidoso que seja – dos seus aliados, sejam eles ucranianos ou israelenses.

Esse posicionamento total se estende da geopolítica à aplicação de direitos como liberdade de expressão e direito de manifestação. Estranhamente, estamos falando de um país que autorizou há uma década o funcionamento de um partido de extrema direita, a Alternativa pela Alemanha (AfD), e nunca tratou com a mesma dureza marchas anti-imigração com claro caráter islamofóbico.

A AfD inclusive tem ligações no mínimo irônicas com a família Netanyahu, com o filho do atual premiê israelense servindo de garoto-propaganda da legenda – curiosamente, há um ano, foi Roger Waters a ser investigado por apologia ao nazismo na Alemanha, justamente por sua performance antinazista.

A troca de um antissemitismo – o ódio aos judeus – por outro – o ódio aos palestinos, que sim são semitas! – se torna a palavra de ordem, muito embora os partidos do establishment não deixem por menos. É um governo “perfeitamente normal” de social-democratas, verdes e liberais que acossa os palestinos.

O minotauro alemão

Efetivamente, a explicação liberal de que tudo isso é justificado como uma aplicação rigorosa do “paradoxo da intolerância” ou a crítica de que Alemanha “enlouqueceu” ou seu governo atual é apenas “burro” simplesmente falhou. Outra leitura, de como Berlim poderia, ao mesmo tempo, apoiar o atacado no caso ucraniano e o invasor no caso israelense é insuficiente.

Talvez a obra do agora censurado Varoufakis nos ajude a entender um pouco mais esse processo. O minotauro global dá pistas para entendermos como uma economia global de equilíbrios desequilibrados foi criada dos anos 1970 em diante – com os Estados Unidos se alimentando dos seus dois déficits, como um grande Minotauro.

“Varoufakis destrinchou como poucos o papel da Alemanha de país derrotado e depois reconstruído pelos Estados Unidos para ser, paradoxalmente, o centro de uma Europa que deveria ser unificada.”

Mas, certamente, duas outras obras seguintes, E os fracos sofrem o que devem?Adultos na sala são definitivas no sentido de prospectar os fundamentos da atual Europa, o mistério de integração problemática e os dilemas práticos que isso diz respeito – e a Alemanha ocupa um papel central nessa conversa.

Varoufakis destrinchou como poucos o papel da Alemanha de país derrotado e depois reconstruído pelos Estados Unidos para ser, paradoxalmente, o centro de uma Europa que deveria ser unificada em torno dela – e não das “aliadas” Inglaterra e França – produzindo um Estado tecnocrático que contaminou o DNA da futura União Europeia.

O que mudou na Alemanha?

Para além da Alemanha ter se reconstruído em torno de seu Banco Central, e deste se fundamentar em uma ideia intrínseca de austeridade, isso produziu efeitos na própria sociedade alemã, no sentido de não a reformar. Como o ex-combatente da Fração do Exército Vermelho Lutz Taufer aponta no seu testemunho, a desnazificação alemã passou longe de ser real.

A Alemanha Ocidental, no pós-guerra, viu os Aliados punirem a nata do nazismo em Nuremberg, mas inúmeras figuras do alto escalão foram poupadas e reinseridas na sociedade alemã – sem maiores explicações ou ressocializações. Isso transformou a derrota em tabu e na conservação de inúmeros dispositivos autoritários.

Lutz Taufer efetivamente apontou bem como a Alemanha apoiou a Guerra do Vietnã, mesmo que timidamente sob um governo social-democrata, em contraste, por exemplo, de Suécia ou Áustria, igualmente europeias e social-democratas. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma questão geopolítica e interna – onde o plano interno nunca contradisse os ditames da Guerra Fria.

“É um aspecto cultural muito profundo, que vimos também em relação ao Tratado de Versalhes – o qual foi derrubado pelo nazismo, iniciando outro tipo de ‘obediência cega’.”

E para além de um progresso econômico que garantiu a adesão ao ocidentalismo cego, obviamente, a decisão sobre essa sujeição não deixa de ser do interesse das elites alemães – do mesmo modo que as elites gregas concordaram com programas de austeridade que, no fim das contas, apenas repassaram os custos da crise para sua classe trabalhadora.

Mas de uma “irracionalidade econômica” que serve à racionalidade das elites e seus interesses – e a burguesia é, desde sempre, ela mesma internacionalista – a isso chegar em um regime cada vez mais caricato não deveria ser uma surpresa, ainda que isso já tenha acontecido nos anos 1960 e 1970 com a repressão à esquerda dissidente.

Não é uma explicação tão simples quanto dizer que a Alemanha é um país, ainda, sob ocupação que sequer possui uma Constituição em termos formais – mas sim uma Lei Fundamental, ela mesma escrita sob a ocupação dos Aliados – e assim está sujeita ao comando estratégico dos Estados Unidos: há uma boa dose de servidão voluntária.

Há, é claro, uma diferença essencial entre a austeridade do pós-crise de 2008 e o momento atual, pois os sacrifícios que a classe dominante alemã admite para a Alemanha também lhe afeta – e não só aos seus trabalhadores. Nesse sentido, teríamos um novo Tratado de Versalhes? Talvez, mas é mais complexo.

Neste exato instante, a burguesia alemã prefere obedecer e, assim, arcar com prejuízos para manter-se em um jogo que lhe foi muito rentável. O que custaria obedecer hoje? É um aspecto cultural muito profundo, que vimos também em relação ao Tratado de Versalhes – o qual foi derrubado pelo nazismo, iniciando outro tipo de “obediência cega”.

“Passados quase dois séculos, a ideologia alemã segue na ordem do dia.”

Recentemente, o cineasta inglês – e judeu – Jonathan Glazer, ao vencer o Oscar de melhor filme estrangeiro pelo excelente Zona de interessefez um discurso talvez surpreendente para a Academia que o premiou: ele compara a indiferença em torno do campo de extermínio de Auschwitz, objeto do filme, com o que se passa hoje em relação à Gaza.

Zona de interesse, uma produção britânico-polonesa gravado em língua alemã, atenta que as coisas mudaram pouco na Alemanha nas últimas décadas, e isso não é apenas um elemento geopolítico, mas de uma constituição profunda da cultura da Alemanha unificada – e seus procedimentos jurídico-políticos.

Uma vez como farsa…

Não à toa, Karl Marx e Friedrich Engels escreveram, entre 1845-1846, os artigos que resultaram n’A ideologia alemã. Nela, elementos particulares de uma Alemanha em vias de se reunificar – embora isso só fosse acontecer nos anos 1870 – já se prefiguravam perigosos. O que teria mudado de lá para cá? Muita coisa, mas não o suficiente para mudar o cerne do país.

Longe de ser uma questão de “essência”, isso trata das estruturas da velha Prússia, que serviram de base para a moderna Alemanha, criando um modus operandi particular de burocracia – tanto nos momentos de chauvinismo moderado (o longo governo de Bismarck) ou radical (Hitler ou Guilherme II) quanto nos de sujeição relativa (Versalhes) ou total (os Acordos de Plaza ou agora).

Sobre os momentos de sujeição total, quando a elite germânica aceitou também se penitenciar junto do povo, se viu, paradoxalmente, uma determinação semelhante aos momentos chauvinistas: uma inquestionável determinação pastoral a punir ou ser punido, somado a uma fria organização cartesiana da desdita – nem que seja a própria.

“A simulação atual de um sistema parlamentar, fundado nos mais profundos valores humanitários, usado para atacar a diferença parece ser uma perfeita realização de um delírio orwelliano.”

Pode-se recorrer ao espírito da velha ideologia protestante, muito embora, o que se veja é um curioso processo de reprodução e resiliência das estruturas políticas, desde o velho Reino da Prússia, passando por todos os três Reichs até chegarmos à moderna República Federal – que não deixa de se projetar para o alto e além como motor imóvel da União Europeia.

No fim, desde as derivas extremistas da direita alemã ao domínio de uma linhagem institucionalista, e adesista, a esquerda mantêm a Alemanha respondendo de forma parecida a crises diversas – a atual, o choque entre o Ocidente imperial e um Oriente em ascensão que desafia, pela primeira vez em duzentos anos, essa hegemonia.

Em outras palavras, a sujeição estratégica aos Estados Unidos e a atuação dos tecnocratas de Washington é real e bastante presente, mas a questão é que a forma da tecnocracia alemã responder a isso – e sua classe dominante – é coincidente com vários outros movimentos históricos. Não é, portanto, apenas um fator conjuntural.

A simulação atual de um sistema parlamentar, fundado nos mais profundos valores humanitários, usado para atacar a diferença parece ser uma perfeita realização de um delírio orwelliano – no qual a Alemanha transforma a liberdade em uma maneira de oprimir e a paz em uma forma de apoiar a guerra. Passados quase dois séculos, a ideologia alemã segue na ordem do dia.


Originalmente publicado em A Terra é Redonda.

Sobre os autores

é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

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Published in Análise, DESTAQUE, Europa, Guerra e imperialismo and História

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